Não te enganes com o mundo, que ele é sumamente enganador e tu sumamente enganado.
O que é o mundo? É- disse um servo de Deus que o conhecia bem- um estalajadeiro que, ao entrar o hóspede, o recebe bem e festeja; mas ao despedi-lo se mostra severo e rígido e lhe pede grandes custos. Todos nós somos hóspedes e passageiros, não havemos de ficar moradores para sempre na estalagem deste mundo. Oh! Que bom rosto nos mostra à entrada! Mas que terrível à saída! Deixamos em custas a fazenda, a honra, o gosto, a vida, o corpo e o pior é que o mais das vezes também fica em custas a alma, que se condena eternamente.
Que é o mundo? É um mar infestado de corsários, que são os demónios; Alterado de contrários ventos, que são as tentações; passeado de sereias e monstros marinhos, que são as afeições ilícitas;
enganoso com baixos e cachopos, que são as traições e calúnias.
Que é o mundo? É tudo às avessas do que haveria de ser: desordem sobre desordem e nem ainda as mesmas desordens vão bem ordenadas. E é o que procurava emendar um filósofo cínico, mandando em seu testamento enterrar-se de costas para cima, para concordar com as muitas coisas do mundo, que são todas às avessas.
Que são os gostos, honras e dignidades do mundo? Apenas panos de armar: pela dianteira vistosos, pelo avesso feios. Tu páras a ver e admiras a glória das ciências, o resplendor dos graus honrosos, a alegria da vida abundante e saúde, a galhardia da formosura humana no verdor dos anos, as músicas, banquetes, jogos, edifícios, etc. Essas são as figuras do pano pela dianteira. Volta do avesso: Que é que vês agora? Oh! Deus meu! Não mais que a vaidade e instabilidade, soberba e aflição de espírito e perigos do inferno.
Parecem-se as mudanças deste mundo e a instabilidade dos que o amam com o jogo dos sacos, que usavam os Persas.
Assentavam no Trono Real alguns dos presos já condenados à morte e lhes davam faculdade de recrear-se quanto quisessem, e os mais do jogo os serviam e obedeciam no que mandavam. Dali a poucas horas, acabado este entremez, os derribavam do Trono, despiam, açoitavam e enforcavam. Oh! Com quantos tem o mundo jogado este jogo! E esta é a maior admiração:
que sendo tantos, o engano de uns não seja o desengano de outros; todos vêem o mau sucesso do jogo e todos querem entrar nele; antes, é invejado o mesmo que sabemos há-de ser logo escarnecido!
Manuel Bernardes, (1644-1710)
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