MINISTROS DE PENA.
É tal o poder, a ocasião e a subtileza deste ofício de ministros de pena, que com um geito de mão e um torcer de pena podem dar vida e tirar vida, com um geito podem-vos dar com que vivais, e com outro geito podem-vos tirar o com que viveis.
Quantos delitos se enfeitam com uma penada! Quantos merecimentos se apagam com uma risca! Quantas famas se escurecem com um borrão! Para que vejam os que escrevem de quantos danos podem ser causa, se a mão não for muito certa, se a pena não for muito aparada, se a tinta não for muito fina, se o papel não for muito limpo.
Eu não sei como não treme a mão a todos os ministros de pena e muito mais àqueles que, sobre um joelho, aos pés do rei, recebem os seus oráculos e os interpretam e entendem. Eles são os que com um advérbio podem limitar ou ampliar fortunas; eles os que com uma cifra podem adiantar direitos e atrasar preferências; eles os que com uma cláusula equívoca ou menos clara podem deixar duvidoso e em questão o que havia de ser certo e efectivo; eles os que com meter ou não meter um papel podem chegar e introduzir a quem quiserem, e desviar e excluir a quem não quiserem; eles, finalmente, os que dão a última forma às resoluções soberanas, de que depende o ser ou não ser de tudo.
Todas as penas, como as ervas, tem a sua virtude; mas as que estão mais chegadas à fonte do poder são as que prevalecem sempre a todas as outras. São por ofício ou artíficio como as penas das águias, das quais dizem os naturais que, postas entre as penas das outras aves, a todas comem e desfazem. Mas, se em vez de serem sãs forem corruptas, elas serão a causa de todas as ruínas e de todas as calamidades. Se perguntardes aos gramáticos de onde se deriva este nome calamidade, «calamitas», responder-vos-ão que de «cálamo».
E o que quer dizer «cálamo» ? Quer dizer cana e pena; porque as penas antigamente faziam-se de certas canas delgadas. Por sinal que diz Plínio que as melhores do mundo eram as da nossa Lusitânea.
Esta derivação ainda é mais certa na política que na gramática. Se as penas de que se serve o rei não forem sãs, destes cálamos se derivarão todas as calamidades públicas, e serão o veneno e enfermidade mortal da monarquia, "HOJE DEMOCRACIA" em vez de serem a saúde dela!
Padre António Vieira (1608-1697)
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